sexta-feira, 27 de junho de 2014

Exercício de ser quem sou




É uma tarde de Primavera, eu tenho seis anos e estou a apanhar flores, que irei enfiar numa linha para fazer um colar. São amarelas e miúdas na memória que me ficou. Tenho seis anos, apanho flores e mora em mim toda a inquietação do mundo, ao pensar na certeza de que, um dia, no futuro, deixarei de ali apanhar flores e desaparecerão as vozes que ouço nos quintais em volta. Tenho seis anos, apanho flores e sou a solidão personificada. Abate-se sobre mim o silêncio futuro, deixado pelos que irão partir. Tenho seis anos. Deixei cair as flores e corro para casa, fugindo às lágrimas que insistem em irromper dos meus olhos de criança. 

Passou-se muito tempo e tornou-se invisível, a criança. Agora, um boneco agitado e espalhafatoso tenta abafar a inquietação do tempo breve e a saudade dos que deixaram vazios os campos, onde crescem flores amarelas, em silêncio.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

lição de abril


hoje é abril,
aquele dia “inteiro e limpo”
cantado pela poesia,
e que belos discursos!
pena é que, no meu país
todos os verbos sejam copulativos
e os lugares deixaram de o ser.
veja-se: “O João foi a Lisboa”,
alguém tornou a sua ida num complemento oblíquo,
pois ir a Lisboa passou a ser qualquer coisa
enviesada e indistinta
para o pobre João provinciano,
que juntou os duodécimos para ir de passeio.

cortaram-lhe pela raiz toda a acção,
mas o João nem repara.

assim estão hoje os cravos.
cortados.
a agonizar.

e nas ruas de Lisboa,
bonitos,
sem raiz,
morrem,
entre eloquentes discursos,
sem haver sujeito que lhes valha.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Exercício redondamente falhado para Fernando Pessoa e El-rei Sebastião


hoje é o futuro da profecia
e, do difuso nevoeiro, nasce,
em esplendor, claro, o dia.

canto hoje os versos do amanhã
e a margem redonda do mundo.
gentio de solidão, ergo
a voz do império fecundo.

arremesso-me, mortal, ao infinito
dispo a cinza futura do que é ser.
luz imaterial, cântico, grito,
sou rumo de horizontes por fazer.

de volta a casa


Passaram-se 3 anos e julguei-a abandonada. Hoje, acidentalmente, entrei na casa e senti-me e ao sentido de voltar a habitá-la. Sem expetativas nem promessas, que me impelem a fuga. Mais não foi do que isso mesmo este tempo que intervala quem era e o que sou três anos após.
Até sempre que me apetecer.